Doze Flores Amarelas, ópera-rock dos Titãs, nos faz refletir sobre lugar de fala

Zambido Bom
4 min readFeb 15, 2019

Uma das mais importantes e longevas bandas do rock nacional, os Titãs decidiram inovar (mais uma vez) e lançaram uma ópera rock no dia 27 de abril, chamada Doze Flores Amarelas. Gênero quase inédito no Brasil — há quem diga que o álbum O Filho de José e Maria, de Odair José, seria o primeiro — , o disco conta a história de três meninas, interpretadas por Corina Sabbas, Cyntia Mendes e Yas Werneck, que vão a uma festa e acabam sendo estupradas por cinco homens. As músicas foram compostas pelos próprios Titãs, mas a narrativa em si é assinada pelos renomados dramaturgos Hugo Possolo e Marcelo Rubens Paiva. Sendo assim, qual o impacto de tantos homens contando uma história sobre estupro de mulheres?

O desenrolar da ópera-rock se dá em três atos. O primeiro marca de cara a presença de Rita Lee (não por acaso, mãe de um dos guitarristas da banda, Beto Lee), fazendo as honras de narrar e fazer o link entre uma canção e outra, e de Jaques Morelenbaum com sua típica orquestração. Já na primeira metade desse ato percebe-se que a presença feminina vocal poderia ser maior, que só aparece a partir da quarta música, a “Weird Sisters”. Afinal, elas são protagonistas da história. Além de “Weird Sisters”, “Festa” e “Fim de festa” se destacam. “Me estuprem”, música tocada nos shows já há algum tempo (inclusive no último Rock in Rio), é uma balada 100% irônica (Me estuprem/ Se eu dei algum motivo/ Me desculpem/ Por eu ser mulher), mas talvez por ser interpretada por um homem, no caso o tecladista Sérgio Britto, isso não fique muito claro.

O Ato II fica marcado pela bela “Eu sou Maria”. Composta por Britto (grande compositor da ópera) e Tony Belloto, essa música também pode se encaixar em outros contextos que não esse da história (Ouça o que diz/ O que diz o juiz /Prefiro ouvir o barulho do vento/ Melhor gritar que ficar em silêncio), como, por exemplo, em outras causas feministas. Também podemos perceber nesse ato que as cantoras estão bem mais presentes, principalmente onde o eu lírico é feminino, como em “Personal hater”, “De janeiro a dezembro”, “Mesmo assim” e “Canção da vingança”. Outro destaque que esta última música é cantada por Belloto — de sua autoria, “Canção da vingança” é a primeira música que em que o guitarrista grava voz em toda a discografia dos Titãs.

Mais uma coisa interessante do segundo ato do Doze Flores Amarelas é a abordagem de diversos pontos de vista e opiniões acerca da história. Tem a curiosa “Mesmo assim”, em que revela que um dos estupros ocorreu dentro de um relacionamento abusivo. Em “Não sei”, Branco Mello e Sérgio Britto cantam com o eu lírico dos estupradores (no means yes/ yes means a-no — não quer dizer sim, sim quer dizer não, tradução livre). Em seguida, vem a música “Essa gente tem que morrer”, que já no nome traz uma opinião polêmica.

O terceiro e último ato é, de longe, o melhor da obra — apesar de os interlúdios continuarem sendo pouco necessários, as músicas estão mais bem construídas, o enredo mais bem amarrado e há traços mais característicos da banda, como “Me chamem de veneno”, “Réquiem” e “É você”. Música que dá nome à ópera rock, “Doze flores amarelas” é um grande destaque, pois é o clímax da história — é o momento em que as Marias fazem feitiço contra os estupradores. Destaque também para as irônicas e polêmicas “Ele morreu” e “Pacto de sangue”. O bom encerramento da obra fica por conta de “Sei que seremos”, que passa uma mensagem de esperança e superação (Agora eu vou fazer assim, eu vou falar/ Eu vou fazer por mim, eu vou gritar).

Com 36 anos de história, é inegável que os Titãs se reinventam a cada disco desde seus primórdios. Em Doze Flores Amarelas, a banda se jogou em uma questão delicada que gera revolta em todos os indivíduos minimamente empáticos e que, se não fosse bem trabalhada, poderia ser perigosa. Apesar da obra ter sido construída por homens e por homens privilegiados — brancos, heterossexuais e de classe abastada — , o tema foi trabalhado de uma maneira pouco problemática. Claro que seria uma experiência mais interessante e completa se as mulheres fossem protagonistas de uma ópera rock como essa. Mas ao mesmo tempo, justamente por serem mulheres, elas possivelmente não teriam a legitimação que o trio tem tido. Pelo menos um primeiro passo já foi dado.

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